Pagantes e o Patriarcado (Portuguese translation)

Quanto mais me aproximo de sete longos anos a viver longe da minha terra natal, sem nenhuma visita durante este período, mais sinto uma sensação de hiraeth a envolver-me. Algo que vai além da saudade, um desejo nostálgico para um lugar que, mesmo estando longe, continua a pertencer-me. Os embates ferozes de cor-de-rosa e laranja que incendiavam os céus ao entardecer. O cheiro do mar salgado carregado pelo vento, enquanto passeávamos pelas ruas da Baía. Agora, encontro consolo nos pequenos mimos e nos sabores da terra que os meus pais trazem quando me vêm visitar. Enquanto ainda não posso regressar, decidi que, no mínimo, encontraria maneiras de sentir-me mais próxima de Angola. Para mim, isso tem sido a literatura, cultura e política—afinal, de uma forma ou de outra, estes temas parecem sempre entrelaçar-se.

 

Ultimamente, tenho-me apanhado a comparar as dinâmicas afetivas e sexuais na Europa com os padrões que conhecia de casa. Após ter ultrapassado o choque cultural inicial, aquela estranheza com a forma como tudo parece tão rápido, tão direto, tão desapegado, pus-me a refletir sobre como os adolescentes angolanos da minha geração lidavam com o desejo. O que nasceu deste pensamento não foi apenas contraste, mas também clareza. Apercebi-me do quão profundamente interligadas estavam as nossas experiências. Por detrás de cada encanto pubescente ou cada flerte sussurrado, haviam três verdades, todas elas inevitavelmente marcadas por género e enraizadas em poder, a correr em pano de fundo: o “terrorismo sexual” que raparigas enfrentavam, a forma de como o sexo passou de algo vergonhoso para algo estratégico, e, como, eventualmente, uma economia inteira formou-se em torno disso. O que começou como um contraste cultural rapidamente se desfez num comentário social muito mais sombrio.

 

Dei por mim a recuar no tempo, até ao início da minha adolescência, alguns anos antes de entrar para o secundário. Antes de continuar, talvez deva explicar o contexto em que cresci, porque foi esse ambiente que moldou a minha perspetiva. Cresci numa família de classe média a média-alta e frequentei uma das melhores escolas privadas do país—um espaço onde muitos alunos vinham de famílias com grande capital financeiro e social. Foi lá que testemunhei um fenómeno social conhecido como mundinho (um nome bastante adequado, não acham?). Refere-se aos círculos fechados que definem uma cena social específica, que persiste até os dias de hoje. Embora o privilégio muitas vezes tenha peso, não é o único fator de inclusão. Alguns entram nesse mundo através de amizades, outros pelo carisma ou talento. Foi nesta era, também, que se deu a ascensão da “New School” em Angola—uma vaga de rappers do SoundCloud e criativos que, com crescente popularidade e diferentes graus de acesso, passaram a fazer parte desse momento cultural.

 

Foi naquele mundinho, naquela rede de amigos e conhecidos, que se criou o palco para a propagação rápida e implacável de misoginia e slut-shaming entre os jovens. Não me faltam dúvidas para acreditar que este fenómeno não era exclusivo à minha realidade social, mas não era esse mundo que eu tinha acesso. O que eu testemunhei, foi como raparigas da minha idade eram castigadas pela sua sexualidade, enquanto que os nossos colegas do sexo masculino eram celebrados como os “rei delas”, um termo que, essencialmente, os coroava pelas suas conquistas sexuais e pelas suas habilidades de “dominar” meninas.

 

Este título era frequentemente melhor exemplificado pelos rappers do SoundCloud que mencionei anteriormente. Fazia parte do capital social masculino; eles podiam hop on a track e falar com arrogância sobre o número de mulheres com quem tinham dormido, ou até mesmo contabilizar o número de abortos que tinham provocado como se fossem troféus.

 

Questiono-me se isto alguma vez nos fez parar para refletir. Sempre esteve enraizado em nós que, quanto mais raparigas um rapaz “conquistasse”, mais respeito ele ganhava… dos outros rapazes. Esse capital social, esse estatuto intocável, muitas vezes dava-lhes impunidade. E, enquanto raparigas, aprendemos cedo que era nossa responsabilidade mantermo-nos seguras, não deles a de não nos fazerem mal.

 

Havia grupos de Whatsapp dedicados a expor e a “espalhar” imagens e vídeos íntimos que raparigas tinham enviado a rapazes de quem gostavam, rapazes em quem pensavam poder confiar. Lembro-me de como esses leaks as vezes aconteciam durante o final-de-semana, e na segunda-feira eram o drama da escola. As raparigas apanhadas nessas tempestades muitas vezes viam-se obrigadas a desaparecer das aulas durante uma semana, à espera que o burburinho acalmasse.

 

Era isto que eu queria dizer com “terrorismo sexual”: a forma como raparigas adolescentes eram condenadas por explorarem a sua sexualidade, por cederem ao desejo, por confiarem o seu corpo a rapazes e pagarem por isso com vergonha pública. Corpos foram transformados em campos de batalha, desejo era punido como crime.

 

Durante a pandemia do COVID-19, houve uma espécie de reivindicação. Raparigas e mulheres jovens começaram a falar sobre os seus agressores. Foi criada uma página no Instagram que deu espaço a essas vozes, permitindo que as histórias fossem contadas anonimamente. Como sendo eu também vítima, senti uma necessidade quase compulsiva de ler cada publicação. Talvez encontrasse consolo no facto de não estar sozinha. No facto de que, como tantas outras, o que me aconteceu nunca teve a ver com o que eu fiz, mas sim com a falta de respeito pelas nossas vozes, pela nossa agência. Foi desolador ler quantas meninas falavam de tios, padrastos (algumas até pais), irmãos. Na altura, tudo o que consegui sentir foi raiva e incredulidade.

 

Hoje, os mesmos sentimentos persistem. Mas também tenho passado algum tempo a tentar perceber porque é que um fenómeno como este continua a repetir-se—e porque é que estes homens parecem sempre sair disto sem alguma consequência.

 

Diz-se que a nossa educação começa em casa, mas também é certo dizer que também os nossos traumas começam lá. É com os nossos pais que primeiro aprendemos a perceber melhor o mundo, mas é também deles que herdamos os nossos primeiros medos e preconceitos. Para as meninas, esses traumas manifestam-se através da ferida materna, da dor herdada das nossas mães (e aqui quero incluir irmãs mais velhas, tias e qualquer outra figura maternal). Sem culpa nenhuma destas mães, elas próprias são vítimas dos seus próprios traumas e de misoginia internalizada.

 

O controlo sobre o corpo das filhas começa cedo, em vez de as protegerem do olhar masculino. Isto cria uma dinâmica em que as meninas são vistas como suspeitas, e não os homens adultos. Tenho inúmeras memórias da minha mãe a dizer-me para trocar de roupa e meter algo mais “modesto” porque os tios iam lá para a casa. Ainda enquanto criança, perguntava-me porque é que tinha de mudar de roupa. Agora, como adulta, pergunto-me porque é que não eram eles a ser avisados, vigiados ou mesmo afastados? E porque é que eram as crianças vistas como suspeitas de serem capazes de seduzir adultos?

 

Isto foi o início de uma lição que demasiadas de nós aprendemos cedo: que os nossos corpos não eram apenas nossos, mas públicos, provocadores, puníveis.

 

Este fenómeno é conhecido por complexo de Lolita. É um termo que se popularizou por causa da obra de Vladimir Nabokov com o mesmo nome. Na história, Dolores Haze—frequentemente referida por Lolita—é descrita pelo narrador como sedutora, um ser sexual que exerce tentação sobre o seu predador. Uma menina de 12 anos, no limiar da puberdade, uma sedutora... O próprio Nabokov nunca aprovou esta dinâmica; fomos nós, enquanto sociedade que a cooptámos para justificar ou romantizar a atração de adultos por menores, para que não tivéssemos de responsabilizar os homens.

 

E esta “lolitização” é exatamente o que acontece em Angola. A culpa é deslocada para a rapariga, que muitas vezes é vista como “rápia” ou “madura para a idade”, ou até objetificada por ser “bem desenvolvida para a idade”. E, por causa disso, o desejo do homem adulto é visto como natural—mesmo quando é projetado em crianças. O homem é, então, visto como provocado pela aparência, roupa ou comportamento dela.

 

Não sei se é da nossa dependência cultural dos homens (que muitas vezes são chefes de família, provedores, detentores de poder) ou se é da crença profunda de que (quase) sempre a culpa é da rapariga. Mas, algures pelo caminho, as mães começaram a proteger os seus maridos, a defender a honra dos seus filhos, a jurar que tal atrocidade nunca poderia vir da sua casa. E, se acontecesse, bem... devia ter sido um momento de fraqueza. Um erro. Um mal-entendido.

 

Um que deixa uma criança traumatizada no seu rasto.

Mães, moldadas pelo medo, pela dependência, pela impotência herdada, muitas vezes escolhem gerir o desconforto em vez de confrontar o perigo. Controlam as filhas, não apenas para proteger aquilo que veem como “propriedade” da família, mas para preservar a paz num sistema em que o rendimento do homem é essencial para a sobrevivência.

Talvez essa seja a parte mais cruel: proteger o predador porque ele é que paga as contas.

 

E quando essa mesma lógica de grooming sai de casa e chega à rua, o ciclo continua. Só que agora, o homem já não é o tio ou padrasto. Agora, é o pagante.

 

A cultura de sugar daddy sempre foi um marco na nossa sociedade. O que vemos agora é apenas um rebranding (como disse uma amiga minha) de uma dinâmica que antes era secreta e malvista—aquela que mantinha amantes em apartamentos pagos, com malas da Chanel, e com promessas de silêncio em troca de lealdade. Um segredo perpetuado, em silêncio, por esposas que acreditavam que, enquanto os maridos voltassem para casa ou separassem as suas vidas paralelas da vida familiar, não havia razão de perturbar a paz. O que antes era um sussurro, agora está às claras, reforçado pela ascensão das redes socias e, mais urgentemente, pelo agravamento da crise económica.

 

Falei com algumas amigas depois de começar a escrever este texto. No geral, concordámos em quase tudo (com algumas divergências aqui e ali), mas foi interessante ver como cada uma abordou o tema. Gostava de poder partilhar tudo o que elas disseram, porque foi tudo muito perspicaz e válido, mas estaríamos aqui uma eternidade. Por isso, partilho algo que a minha amiga Nair disse: “Esta cultura cresceu dentro das nossas casas, não dita em tons de choque ou olhares escandalizados, mas com normalidade e incentivo. E cresceu até se tornar num caminho que muitas jovens pensam ser correto e que mostram com orgulho” (tradução aproximada).

 

Existem muitas razões pelas quais a cultura de pagantes criou raízes e se espalhou. Para poupar tempo, não as vou enumerar todas. Mas a que me encontro mais vezes a regressar é a forma como homens mais velhos começaram as procurar meninas (mal-entradas na adolescência) para satisfazer desejos que não podiam concretizar em casa. Estas meninas eram muitas vezes atraídas e depois aliciadas aos poucos, com promessas de iPhones, propinas pagas, ou apenas uma mesada estável em troca de sexo.

Raparigas como eu não tinham muitos motivos para recorrer a tios para nos ajudarem financeiramente. Os nossos pais pagavam as propinas, compravam os telemóveis, proporcionavam-nos alguns luxos ocasionais. Mas, dentro do mundinho, a riqueza não era a única moeda de troca. Popularidade, proximidade, acesso também te podiam abrir portas. Como já mencionei antes, algumas pessoas tornavam-se conhecidas apenas por associação: o primo de um rapper, a melhor amiga da fulana, a mulata mais bonita (não vou falar do nosso problema com o colorismo hoje). Nesses círculos, ser visto com a pessoa certa ou ser convidada para a festa certa podia elevar o teu estatuto social.

Mas nem toda a gente nesse mundo pequeno era rico, embora a riqueza dominasse as dinâmicas. A proximidade dava-te acesso, sim, mas para te manteres lá, para acompanhares as tendências, as saídas, as viagens de verão a Lisboa—isso exigia dinheiro. Havia raparigas que não eram pobres, mas também não eram riquíssimas, e que tinham um tio para ajudar a manter aquele estilo de vida cuidadosamente curado. Não era por desespero; fazia parte do jogo, de ser desejada, notada, conhecida.

 

Nesses casos, a transação não era só sobre sobrevivência. Às vezes, era sobre pertencer, e isso, também, tornava-nos vulneráveis.

 

Entretanto, fora desses círculos fechados, meninas não estavam apenas a perseguir imagem. Perseguiam dinheiro para o almoço, propinas, fraldas. Nos musseques e zonas periféricas, o pagante não é um luxo. É o pão de cada dia.

Num estudo de 2016 intitulado Sex, Love and Money along the Namibian-Angolan Border, publicado na revista Culture, Health & Sexuality por Pinho et al., os investigadores observaram que raparigas (especialmente aquelas excluídas do mercado de trabalho formal) recorriam a redes emocionais-sexuais não apenas por presentes, mas para sobreviver. Cito este estudo aqui porque, quando comecei a minha pesquisa, parti do pressuposto que estes tipos de transações se encaixavam facilmente na categoria de trabalho sexual. E, durante as conversas que tive com as minhas amigas, muitas delas concordaram. Mas o estudo complicou a minha suposição. Estas relações nem sempre são vistas no sentido formal. Estes homens não eram considerados como clientes, mas sim parceiros extraconjugais. Eram “relacionamentos” (por vezes românticos, por vezes estratégicos) enraizados na troca, sim, mas também no cuidado, na rotina e em linhas de afeto que se confundem.

A investigação evidenciou que, nessas comunidades marginalizadas, algumas raparigas não gostavam do que faziam, algumas eram até forçadas pelas próprias mães. Outras, mesmo sem estarem totalmente desesperadas, viam nisso o único caminho para alcançar algo: a vida na cidade, a modernidade, a possibilidade de se tornar alguém. O estudo documentou como presentes, dinheiro e até afeto circulavam nestas relações, sustentando tanto a sobrevivência material como a ambição social.

O que este estudo deixou claro, para mim, é que nem todas as estratégias de sobrevivência tomam a forma de trabalho sexual formal. A própria intimidade, quando mediada pela necessidade material, torna-se transacional de formas que fogem a categorizações simples. E essa distinção é importante. Ela desafia o binário de vítima ou agente, trabalhadora de sexo ou namorada. E, também, obriga-nos a questionar o que acontece quando o afeto, a sobrevivência e a desigualdade se entrelaçam tão profundamente que até dar um nome à dinâmica se torna difícil. Se raparigas marginalizadas entram neste tipo de relações para sobreviver, as suas contrapartes urbanas (muitas vezes bem posicionadas e digitalmente conectadas) começaram a cultivá-las com intenção.

Permitam-me citar novamente a Nair, porque eu própria não conseguiria expressar melhor, e ela conseguiu encapsular exatamente o argumento que tento defender: “O sexo agora é uma arma. As mulheres dizem isso abertamente. E os homens também. A dinâmica das relações entre todos baseia-se em estatuto social, dinheiro, troca e poder. E o sexo funciona como uma máquina manipuladora para conseguir que as pessoas façam o que queremos, para nos darem o que desejamos, como um atalho para o sucesso instantâneo e um degrau na escada social ou de poder.”

Com o surgimento das redes sociais, a performance de feminilidade e desejabilidade em Angola encontrou um novo palco. Muitas mulheres começaram a “assumir a troca”: por definir os seus termos, ao nomear o seu valor, e por escolher o seu benfeitor—as chamadas gestoras. O que antes era escondido com vergonha tornou-se tendência, até mesmo motivo de humor. Um símbolo de astúcia, estratégia e soft power. Mas por baixo dessa tal astúcia está uma verdade que já conhecemos: o homem continua a pagar. A mulher continua a negociar o seu valor em função da provisão masculina. As condições mudaram, mas a dependência permanece.

Essa é a parte que hesitamos em admitir, não é? Que isto, também, é uma espécie de cativeiro. Que pode parecer controlo ou agência, mas continua a ser moldado pela mesma precariedade estrutural. Uma precariedade que decide quem é protegido, quem é escolhido, quem é deixado para trás. Uma precariedade que recompensa a desejabilidade enquanto pune o envelhecimento, a gravidez e as expectativas emocionais. E quando a sobrevivência está na linha, há pouco espaço para jogos de poder.

Isto não é apenas sobre género. É sobre a economia: o custo de vida, a falta de redes de proteção social, a erosão sistémica de alternativas.

Numa altura em que o desemprego jovem mantém-se criticamente elevado, em que a criação de empregos e as oportunidades para mulheres são escassas, em que a educação está subfinanciada e o Estado falha em oferecer proteção e mobilidade, não é surpresa que economias informais de sobrevivência comecem a florescer. A cultura de pagantes não é apenas uma mudança cultural, é um sintoma económico.

Angola é um país de hustlers, de pessoas que batalham todos os dias pelo seu sustento. Num ambiente moldado pela repressão, esta nunca seria uma história de libertação, mas sim de adaptação. Nas semanas que passei a tentar compreender este panorama, em conversas com mulheres que partilharam o seu cansaço, frustração e até compaixão, percebi quantos ramos entrelaçados criam esta confusão (como já viram ao longo do texto).

Não procuro heróis e muito menos vilões. Procuro uma linguagem que consiga traduzir as contradições em que vivemos. Isto não é uma lição de moral. Não é um triunfo feminista. É algo mais sinistro: uma história de sobrevivência disfarçada por adoços, sexo e silêncio.

Deixo esta reflexão em aberto, porque nenhum de nós sabe como será o próximo capítulo. Ainda não estamos livres. Continuamos a sobreviver.

E como não há moral nesta história, deixo-vos antes com uma pergunta: o que significa empoderamento se está sempre à custa do nosso corpo?

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The Cost of Sweetness